O princípio da dignidade da pessoa humana, a igualdade de gênero e a proteção formal e substancial da mulher

Não são poucas as conquistas femininas para a minha geração – geração de mulheres de trinta e poucos anos. O século 20 foi marcado por transformações históricas e diversas conquistas femininas, pois saímos de uma situação de submissão e inferioridade, em que a mulher era considerada relativamente capaz (artigo 6º, inciso II, do CC de 1916), necessitando ser assistida ou ter seus atos ratificados pelo pai ou marido, passando pela conquista do direito ao voto (decreto 21.076, de 24 de fevereiro de 1932 – Código Eleitoral), buscando acesso à educação, melhores condições de trabalho, e a atribuição da capacidade civil (lei 4.121/62 – Estatuto da Mulher Casada, que eliminou a incapacidade relativa da mulher casada), para uma situação de igualdade formal com a CF/88. Atingimos o direito ao tratamento igualitário com relação aos homens.

A opção do legislador constituinte de 1988 pela busca da igualdade material é muito clara, basta observamos, a título de exemplo, os artigos 3º, 7º inc. XX, 37 inc. VIII e 170.

A previsão, ainda que programática, de que a República Federativa do Brasil tem como um de seus objetivos fundamentais reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), a veemente repulsa a qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV), a universalidade da seguridade social, a garantia ao direito à saúde, à educação baseada em princípios democráticos e de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, enfim a preocupação com a justiça social como objetivo das ordens econômica e social (arts. 170, 193, 196 e 205) constituem reais promessas de busca da igualdade material.

Nesta medida, o símbolo da preocupação do legislador constituinte originário com os direitos e garantias fundamentais e a questão da igualdade é patente, seja pela topografia de destaque que recebe este grupo de direitos fundamentais e deveres em relação às Constituições anteriores, pelo reconhecimento dos direitos coletivos, seja pela elevação à cláusula pétrea, dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV).

Em busca da igualdade material podemos citar as ações afirmativas, que têm como objetivo central minimizar desigualdades, compensar fraquezas econômicas, sociais e culturais. As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos de discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física.

Nesta compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. As ações afirmativas surgiram da constatação de que os homens podem nascer iguais em dignidade e direitos, mas vivem em situações de desigualdades.

A igualdade no Diploma Constitucional de 1988 perdeu a característica meramente formal, passando a ter uma característica substancial, ou seja, deixa de ser apenas uma igualdade na lei para postular uma igualdade real e efetiva, uniforme de todos os homens perante os bens da vida. Os homens não são feitos para as leis, mas que as leis é que são feitas para os homens – que (…) o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual.

Nesse preceito são considerados como objetivos fundamentais de nossa República: primeiro, construir uma sociedade livre, justa e solidária; segundo, garantir o desenvolvimento nacional, não uma atitude simplesmente estática, mas uma posição ativa; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, por último, no que nos interessa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Posso asseverar, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos construir, garantir, erradicar e promover implicam, em si, mudança de óptica, ao denotar ação.

Por que falar em Direitos Humanos e Princípios Fundamentais – notadamente o da Dignidade da Pessoa Humana e o da Igualdade – para expor-se a questão da discriminação da mulher no mundo?

Pergunta-se ainda: Há vida sem Direitos Humanos? Talvez sob o ponto biológico sim, mas o homem reduz-se a isso? E de quem é a responsabilidade pela promoção de tais direitos e obrigações? Quando se afirmar que a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade são inerentes à pessoa desde o seu nascimento, e que tais atributos do ser humano devem ser respeitados e desenvolvidos ao longo de sua vida, estamos afirmando ser da responsabilidade de todos – leia-se: Estado (legislativo, executivo e judiciário) e Sociedade – lutar para que tais direitos não sejam violados.

O homem não vive sozinho, vive no meio social, nesse contexto, tem o direito de desenvolver-se sob a égide dos Direitos Humanos Fundamentais, isto é, com liberdade, igualdade, dignidade, segurança, justiça e outros princípios fundamentais, que vão dando forma e reafirmando o princípio da dignidade da pessoa humana.

Todas as formas de discriminação ilícitas são odiosas, contudo, a pior forma de discriminação de fato resulta de uma política de neutralidade e de indiferença do aparato estatal para com as vítimas da discriminação. Avançamos bastante no que diz respeito à legislação contra a discriminação contra a mulher, mas precisamos lutar muito mais para que a legislação ganhe efetividade e atinja a finalidade e alcance almejados.

E esta luta passa, necessariamente pelas políticas públicas. Desta forma, em que pese, as Políticas Públicas, vez que Direito e Política tem uma relação estreita, na medida em que no mundo das realizações humanas o homem precisa da intervenção do Estado para a manutenção da ordem, da segurança, da paz social e como agente realizador de políticas voltadas à harmonização das relações sociais. Se de fato o fim da política é (ou deveria ser) o BEM propriamente humano o Estado tem o poder-dever de criar programas de ação governamental, condicionando a sua execução para a persecução de tais objetivos.

No que diz respeito à mulher existe um “Plano Nacional de Políticas para as Mulheres”, reconhecendo as desigualdades de gênero, as discriminações com relação às mulheres, com objetivos, metas e diretrizes bem definidas para mudar esta triste realidade. Mas, como dito anteriormente, palavras por si só não mudam a cultura de um povo, é necessário vontade política e ação.

Enfim, é preciso entender que muitos são os desafios para extirpar a discriminação contra mulheres, que vai desde “fiu fiu”, passando pelo mercado de trabalho, até ao ápice da violência física, psíquica e moral, em todas as esferas e classes sociais, independentemente de idade e grau de escolaridade (tanto dos agressores como das mulheres agredidas).

Longo foi o caminho trilhado até aqui rumo à conquista dos direitos de igualdade, e talvez mais longo ainda seja o da eliminação total da discriminação contra mulheres, vez que também a luta se dá de forma desigual, pois interessa a uma parcela da sociedade a manutenção do status  a quo, além de tratar-se de uma violência silenciosa e clandestina.

Superar estes obstáculos depende de leis sim, à medida em que se entende que leis são importantes para forçar mudanças sociais, mas não são capazes, por si só, de mudarem conceitos subjetivos e ações, mas depende, sobretudo, de transformações culturais e sociais (que não ocorrem somente com leis), além de mãos firmes do poder judiciário aplicando a legislação existente, bem como de políticas públicas bem definidas por parte do poder executivo. Agregue-se a isso a informação e discussão com a população, papel que vem sendo desempenhado de forma significativa por parte das Entidades do Terceiro Setor.

Em suma, precisamos de ações afirmativas para a efetividade da igualdade real, ações que inclusive têm guarida na Constituição Federal, conforme se depreende do artigo 3º, inciso IV, que prevê que a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.

Jamile Sumaia Serea Kassem, Secretária da Comissão da Mulher Advogada. Mestre em Direito, professora, advogada.